quinta-feira, 24 de novembro de 2016




O que é Vermelho?
(Pergunta a filósofos e linguistas)


Tenho um sobrinho que está naquela fase dos porquês, ou seja, na fase em que a criança faz perguntas sobre tudo; é porque atrás de porque, nos colocando às vezes em situações constrangedoras e constantemente frente a perguntas irrespondíveis. Passei por isso no sábado passado, e tenho que dizer que até agora eu não sei a resposta, inclusive, cheguei à conclusão de que nunca soube a resposta, e acho também que ninguém no mundo sabe, soube ou saberá responder ao meu sobrinho.
Diante de todas as descobertas brilhantes do ser humano, diante das questões filosóficas que já foram objeto de discussão por centenas de anos entre os grandes pensadores, diante da pretensão humana de querer explicar até mesmo o inefável, é de se pensar que a pergunta do meu sobrinho tenha sido muito difícil, pois senão, a resposta seria facilmente encontrada. Mas não! A pergunta foi extremamente simples, e aconteceu da seguinte maneira: Estava eu na cozinha, com meu sobrinho, preparando o café da manhã para nós, quando eu virei para ele e lhe pedi que pegasse e me desse um pote de plástico – onde fica o achocolatado.
– Pega aquele pote vermelho ali pro tio, Gu – apontei para o pote.
Ele então pegou o pote e me entregou. Mas eu reparei que ele continuou olhando fixamente pro pote, imaginando algo, pensando algo, sei lá o que se passava na cabeça dele.
– O que foi, Gu? – Perguntei a ele.
– Tio, o que é vermelho? – Essa foi a pergunta escabrosa.
– Vermelho é uma cor... Aqui ó – apontei para o pote –, isso é vermelho.
– Ah... – ele balbuciou, meio decepcionado; algo que percebi por causa dos olhinhos fixos que insistiam em mirar o pote.
Tomamos normalmente o nosso café, levei o meu sobrinho para a casa da minha irmã e eu fui para o trabalho. No entanto, no ônibus – vendo pela janela o cinza da cidade passar lá fora – eu me lembrei da pergunta, e percebi que eu não tinha respondido absolutamente nada ao meu sobrinho, apenas indiquei a classe à qual o vermelho pertence – que é a classe das cores – e a indiquei. Contudo, fiquei pensando na hipótese de o meu sobrinho ter nascido cego e, com isso, não saber o que é cor e também não ter tido nunca a sensação – pelos olhos – do vermelho. Aí foi que eu percebi que eu mesmo nunca soube o significado de vermelho, afinal, o que eu responderia a um cego de nascença se ele me perguntasse “o que é vermelho?”. Absolutamente eu não sei, e tenho a leve impressão de que ninguém no mundo um dia soube, sabe ou saberá, como já citei acima. E digo isso porque pesquisei em vários sites e em alguns livros e, muito embora eu não tenha esgotado as possibilidades de pesquisa, tenho a impressão de que não há resposta para tal pergunta. Podemos dizer que o vermelho é uma cor primária que não é nem o amarelo e nem o azul. Mas o que faço com isso? Será que um cego de nascença construiria em sua mente a representação perfeita do vermelho ao ouvir essa definição? Acredito que não.
Então, comecei a pensar que só pela tentativa de definir o vermelho já imergimos num cantinho de treva do imenso campo iluminado pela razão, mas após ficar insistentemente refletindo sobre a pergunta do meu sobrinho eu percebi que a situação é muito mais complicada, afinal, imagina se ele virasse pra mim e me perguntasse:
– O que é doce, tio? O que é amargo? O que é cheiro de maçã, tio?
O que eu faria? Responderia que doce é aquilo que tem açúcar? Que é aquilo que não é salgado? Mas e se aquele que me questiona não sabe o que é açúcar e não sabe o que é salgado, como respondo? O que significa doce? Eu não sei... Como não sei o que significa amargo além da sensação de amargo que sinto quando o recebo em minha boca. Mas suponha que alguém nunca tenha experimentado alguma coisa amarga e lhe faz a pergunta “o que é amargo?”. Como se responde? Enfia-se o amargo goela abaixo do cidadão? Eu não sei... E o cheiro de maçã? Qual o significado disso? Cheiro de uma fruta saborosa, vermelha, cultivada em climas amenos e etc. etc. etc.? Será que tudo o que for possível dizer é capaz de satisfatoriamente explicitar e esgotar completamente o significado de “cheiro de maçã” a alguém que nunca teve contato com a fruta ou que jamais conseguirá sentir – pelo olfato – esse cheiro? Acho que não... Mas eu sou um mero mortal que não faz mais nada neste momento além de divagar. Deixo aos especialistas e pensadores a tarefa de responder – se isso for possível – ao meu sobrinho:
– O que é vermelho, senhores?
Aguardo ansiosamente pelas respostas, afinal, quando uma criança insiste numa coisa é difícil de tirar essa coisa da cabeça dela, e temo que meu sobrinho volte a me fazer tal pergunta ou que também queira saber um dia o que é amarelo.





" SOLIDÃO "


No escafandro em que me encontro já está faltando ar.
A clausura da amargura cada vez mais apertada.
Alma seca e machucada já não pode nem chorar.
Pela dor de um amor que há tempos foi embora.
Clamo a Deus com desespero pra ferida ele fechar.
Traga luz, uma chama.
Minha esperança renovar.

Pois morri com a partida, sem despedida.
Bradei ao mundo nunca mais me apaixonar.
Mas não suporto, peço outra musa.
Um novo amor que me faça pulular.
Retirando-me da densa bruma.
Da inglória tristeza a me definhar.
Trazendo-me sorrisos, uma nova vida.


quinta-feira, 19 de novembro de 2015



Lindo Encontro


     Num belo domingo, de noite, eu voltei ébrio do sítio de um conhecido meu. E o pouco que me lembro é que Morfeu recebeu-me e pôs-me em sonhos... Só que nem dormi direito e, despertei com o telefone insistindo... Ouvi o gorjeio do cuco e vi o relógio dizendo oito em ponto.
     “Quem pode ser logo cedo”? – Pensei.
     – Oi... Pronunciei-me no momento em que peguei o fone.
     – Ooooooooiiii, lindo! – Um grito seguido de um sussurro:
     – Esqueceu de mim?
     – Denise? – Perguntei como se estivesse num sonho.
     – Bingo! – Denise respondeu.
   Excitei-me, refiz-me sobre os lençóis e endireitei o fone no ouvido direito, com intuito de ouvir melhor.
    – Como eu vou me esquecer de um ser lindo como você? – Questionei num sussurro de locutor.
     – Você sempre diz isso? Risos...
    – Impossível... Encontro como o que ontem tive contigo só me ocorreu ontem. Mulher como você só se for um clone, ou em sonhos...
     – Clone? Risos... – Muito bom! Nós nos veremos de novo? Ou você é como os outros homens, que prometem o mundo num segundo e noutro se esquecem dos dizeres?
    – Posso dizer que sou único, só isso! Possuo inúmeros defeitos, só que sou único, isso eu sou... Um medíocre em muitos momentos, como posso ser inesquecível noutros.
     – E modesto, né?
     Risos dos dois...
     – Só um pouco.
     Outros risos...
     – Se depender de mim, é óbvio que nos veremos. Estou louco e frenético por esse momento – expressei meus sentimentos, intrépido, sem cortes.
    – E eu digo o mesmo – Denise emendou. – E em que noite nos veremos?
     – Tem que ser noite? Risos...
     – Eu prefiro... De noite o belo surge e os momentos simples se convertem em esplendor.
     – Seus dizeres vêm sempre em versos? Risos...
   – Só se me restringirem... E o escritor nos restringiu, querido...
     Risos dos dois...
     – Pode ser hoje nosso encontro? – Perguntei, sôfrego.
   – E como pode... Esse convite é o que de melhor ouvi nos últimos meses. Esperei desprezo de você. Só que vejo que me equivoquei. Você é mesmo um príncipe.
   – Eu? Um príncipe? Como pode ver-me desse jeito se me conhece bem pouco?
    – Eu sinto... Posso dizer que é um sexto sentido feminino. Risos...
     – Se você diz...
    – Digo sim... Sim por outro encontro contigo... Sim por um belo sonho que vejo surgir. Um sonho de nós dois juntos, nos querendo.
     Excitei-me ouvindo Denise...
     – E onde nos veremos? – Perguntei.
     – Posso escolher?
     – É óbvio que pode. Você pode tudo.
     Risos dos dois...

     Ficou certo de nos vermos no Shopping...
    Desliguei o telefone e belisquei-me. Lembrei-me do decorrido com meiguice.

   Conheci Denise por intermédio de um conhecido meu. No primeiro encontro houve um clique entre nós, só que tivemos pouco tempo. Contudo, o destino tece rumos que nos surpreende, e ontem nos vimos de novo, no sítio. Discorremos poucos verbetes, e veio o primeiro beijo, um loooongo beijo... Depois veio outro, e outros... Que encontro lindo que tive com Denise, ferventes sonhos, em poucos minutos, porém, inesquecíveis...
  “Que mulher”... Perdi-me em enlevos por um momento. Despertei... Iniciei meus serviços como noutros corriqueiros e comuns domingos... Inquieto pelo surpreendente próximo encontro com Denise. “Que mulher”...

     De noite – perto do momento de nosso encontro – fiquei pior, meu peito tornou-se um misto de desespero e fulgor, como em todo primeiro encontro, ou segundo. Entrei no chuveiro e fiquei por um looooooongo tempo sentindo o morno líquido incolor correr pelo meu corpo, embebendo meu espírito de esplendor. Emergi do chuveiro depois de uns vinte minutos e sequei-me, me perfumei com um Hugo Boss e fui me vestir.
    No Shopping escolhido eu cheguei uns dez minutos depois do que combinei com Denise, só que dei sorte, porque Denise chegou uns quinze minutos depois de mim. Demorou um pouquinho, porém chegou.
  Denise surgiu sob um belíssimo tubinho preto, com um pingente em ouro pendendo por entre um surpreendente decote em V, sobre um Luís XV vermelho, que me excitou, porém, contive-me. “Pinto duro num Shopping Center nem sempre é bem visto” – pensei. Ignorei o instinto e comportei-me como tem que ser um ser que possui cérebro... Cérebro com Q.I... É óbvio! Risos do escritor.
    – Demorei? – Denise questionou-me com um doce sussurro no ouvido.
    – Estou muito feliz só por você ter vindo – respondi, sorrindo, num sussurro como o de Denise, só que o meu foi junto com um leve beijo no pescoço.
     Denise eriçou-se, um leve rubor corou-lhe o rosto, porém, se comportou como os seres que têm cérebro. Risos do escritor.
    – Você quer comer? Ver um filme? O que você quer meu bem?
     – Primeiro eu preciso comer, mesmo que for só um petisco, estou morrendo de fome. Tomei somente um copo de leite hoje cedo, depois só respirei e vegetei.
     – Tudo bem... – Concordei com Denise. – E por que ficou sem comer? – Fiquei curioso.
     – E se eu lhe disser que foi por que desde ontem – depois do nosso encontro – eu só pensei em você, o tempo todo?
     – Foi bom o suficiente que fez com que você se esquecesse inclusive de comer?
     – Foi ótimo! Excelente! Contudo... Se fosse só isso...
   – O que você quer dizer com “se fosse só isso”? O que ocorreu? – Inquiri Denise.
   – Preciso lhe dizer um negócio muito sério. Pôr todos os pingos nos seus devidos is. Só que isso só depois de comermos. Pode ser?
     – Tudo bem... – Consenti, e contive-me, curioso. – É sério?
     – É sério sim, só que é em nosso benefício. Confie em mim...
     – Tudo bem – concordei sem insistir muito.
    – Podemos comer? – Denise questionou-me de novo, com um leve e lindo sorriso.
     – Demorou, né? – Brinquei, e quebrei o gelo do momento.
  Nós dois rimos. Denise chegou pertinho de mim, tocou docemente em meu rosto e puxou-lho, deu-me um selinho. – Confie em mim – Denise proferiu e olhou fundo nos meus olhos, chegou perto de novo, e me deu um loooongo beijo.
   Fervi-me por dentro, excitei-me com o beijo, e o medo do negócio sério que Denise disse sumiu por um momento.
   Envolvidos um no outro percorremos o extenso corredor. Nós dois felizes por nos vermos de novo.
     No fim do corredor demos de frente com inúmeros recintos, e escolhemos um – Denise escolheu, e eu concordei – que serve peixe cru.
   Comemos inúmeros dos benditos peixes crus e bebemos muito vinho entre deliciosos sorrisos, nos conhecendo, nos querendo, e só depois inquiri Denise:
     – Podemos...
   – Bom... – Denise interrompeu-me. – O que vou lhe dizer pode por um fim em todo o belo que vivemos ontem no sítio e hoje neste shopping, pode por fim num sonho meu e seu.
     – Tudo bem, Denise. Eu vou enten...
   – Eu tenho um compromisso, Júlio. Um homem com quem vivi meus últimos sete verões... Verões de choro, de desespero, de querer morrer. Verões muito tristes. Entreguei os pontos, mingüei por longos e frios invernos. Sem sonho, sem querer um futuro, sem ver sequer um futuro... Sentindo por vezes o fim muito perto. Só que você surgiu e iluminou o meu peito com novos sonhos... Porém, eu tenho um compromisso... Esse é o negócio sério...
     – Denise, eu...
     – Tudo bem! Tudo bem... Você tem todo direito de cuspir em mim, de me...
   – Denise – interrompi. – O que quero viver com você é futuro. O que você fez ontem é o de menos. Só quero viver contigo e, se você me quiser, o resto é só empecilho, mínimo empecilho.
    – É tudo o que eu quero. E como eu quero, Júlio. Um viver intenso e com sorrisos junto de ti, um viver sem socos, sem dores e sem xingos, como vivi nos meus últimos outonos. Eu só vou resolver o que tenho que resolver com meu esposo, ou ex-esposo, e seremos muito felizes.
     – Eu lhe espero, Denise – concluí. – Porém, espero que entre nós o sincero sempre impere. Se tivermos que mentir é melhor escolhermos o fim.
    – Eu prometo, e desde hoje desprendo todo o sincero que existe dentro de mim. Confie no meu desejo, e no que eu digo. Você mexeu comigo, isso é visível. E eu lhe quero... Como quero...
     Denise chegou perto de mim, tocou levemente no meu rosto, fechou os olhos repletos de choro e pediu-me um beijo. Fechei os meus com ciscos e recebi o beijo, tudo se emudeceu. O mundo silenciou-se... Por nós dois...

***

     Empós o beijo nos despedimos e, ficou certo de nos vermos de novo em vinte e cinco de Outubro, um mês depois desse nosso encontro no shopping. Mês longo e triste. Conversei com Denise somente por telefone, e sempre com choro dos dois. Foi duro e doloroso, porém, findou...
     Em vinte e cinco de Outubro esperei no ponto em que ficou certo de nos vermos, por dez minutos. E depois de um tempinho em pé pude ver Denise vindo, pouco feliz... Com óculos escuros e olhos no piso.
     – Que bom lhe ver de... – Tentei dizer.
     Denise impediu-me, jogou fortemente seu corpo sobre o meu, e chorou por uns cinco compridos minutos, sobre o meu ombro, sobre o meu peito. Recebi seu desespero sem ter sequer o que dizer, fiquei mudo por uns segundos.
   – O que foi Denise? – Perguntei, depois do término do primeiro susto.
   – Ele me socou, Júlio... Ele me socou de novo – Denise continuou o choro e, nos seus poucos dizeres entendi tudo.
   – Continuei quieto, só ouvindo, sendo ombro. – Mulher, escute-me... – brinquei com o intuito de obter um sorriso, e deu certo, Denise deixou um singelo sorriso surgir no meio de um profundo choro, misto de dor e medo. – É o momento de você recolher seus pertences e vir comigo. Esquece o que você viveu com esse homem que só lhe fez sofrer, pise nesse episódio e reinvente seu destino, seu futuro. Existe um terno e infinito mundo sobre os muros, um imenso e belíssimo horizonte, onde você pode correr e sorrir. Comigo, é óbvio. – Gerei outro riso. – Onde nós dois viveremos juntos, felizes... Remodele seu destino comigo... – Nesse momento mirei meus olhos bem nos olhos de Denise, vi dor, desespero, choro, o roxo, e vi desejo, um desejo com o meu nome, um pedido mudo, vindo do íntimo, do peito. Li o pedido de Denise. – Te quero – sussurrei.
     – E eu te quero em dobro! – Denise emendou, e jogou-se de novo no meu colo. – Eu vou colher meus objetos e lhe encontro no seu loft...
     – Eu vou contigo!
     – Impossível, querido. É melhor eu ir só, o Henrique (nome do esposo de Denise) é muito hostil, e envolver você em socos é o que menos quero neste momento.
     – Denise, se for preciso eu quebro esse imbecil.
    – Júlio... Escute-me, por obséquio. Deixe-me ir só. Eu juro que pego meus pertences e sumo. Hoje foi o último soco que levei, confie em mim. Vou recolher tudo o que preciso e lhe encontro. Confie em mim, querido.
   – Tudo bem, eu lhe espero – concordei meio inquieto, querendo ir junto.
    – Confie em mim – Denise insistiu. – Hoje mesmo eu lhe encontro no seu loft.
     – Um novo viver? – Perguntei.
     – Um novo viver, eu lhe prometo – Denise chegou bem perto de mim, secou o choro e deu-me um leve beijo, bem terno. – Um novo viver, eu juro. Dê-me uns minutos e logo nos veremos, hoje mesmo eu decido tudo. – Denise beijou-me levemente, olhou nos meus olhos, virou-se e correu.
     Fiquei perplexo e sem entender um décimo do ocorrido. “Por que Denise correu”? – Pensei. Porém, o impossível de interferir só me deu um destino, o meu loft... E o regredir do relógio... Foi o que fiz. No meu loft eu cheguei cem minutos depois do encontro com Denise, e inquieto esperei outros cem.

     Depois de muito tempo do que combinei com Denise, ouvi um ruído externo. Corri e, pelo vidro do corredor vi o veículo verde de Denise. Meu peito ferveu... Despontei do loft num desespero tremendo. Denise me viu correndo e sorriu. Só que o meio fio foi meu limite, de repente – entre Denise e eu – surgiu um motoqueiro do desconhecido, todo de preto, e me deu dois tiros, um no joelho e outro no peito. O do joelho fez-me perder o equilíbrio, sentei... E o do peito fez-me perder os sentidos, deitei, ouvi um último grito de desespero emitido por Denise, e meu mundo escureceu.

     Denise contou-me depois os pormenores do ocorrido. Sobre o desespero que sentiu no momento em que me viu morrendo no meio fio. Disse-me que pediu socorro e ninguém ouviu. Que discou o número do corpo de bombeiros e esperou-lhes por dez minutos.

***

    Brotei do fim – sobre o leito do centro intensivo de um pronto-socorro –, confuso, repleto de tubos e gemendo de dor.
    O viver é incerto, sem completos... Sem eternos... Num minuto eu vivo e feliz, noutro moribundo, com um pé no poço e um no liso.
   Observei os médicos e enfermeiros por pouquíssimos segundos, mexendo em meus tubos, conferindo o meu soro, meu pulso, depois tudo escuro, de novo. Dormi por muito tempo e, despertei com o sublime toque de Denise percorrendo o meu rosto, de leve... Bem de leve... Num primeiro momento pensei que fosse sonho, delírio, febre. Denise sorriu de novo, junto de um choro contido e feliz. Chorei junto, sorri muito... Nós dois de novo.
     – Que bom vê-lo de novo, querido! Tive imenso medo de lhe perder.
    – Estou vivo, Denise... Estou vivo... – Um imenso choro correu sobre meu rosto, um choro feliz.
     – Foi ele, querido... Foi ele quem lhe deu os dois tiros.
     – Ele quem, Denise? O que quer dizer?
    – Foi o Henrique, querido. Foi ele quem lhe deu os tiros no peito e no joelho.
     – Como? – Perguntei perplexo. – Isso é impossível! Só se ele seguisse você.
     – E foi isso mesmo o que ocorreu querido... Ele seguiu-me e descontou em você o fervor dos cornos.

     – Éééé, senhor ......, o senhor prossegue vivo neste mundo por sorte, e foi por muito pouco... Você tomou um tiro que irrompeu seu peito e perfurou um de seus pulmões – o médico entrou no leito, interrompendo Denise e eu.
    – Foi sério mesmo, doutor? – Questionei o celeste ser que impediu o meu cedo fenecer.
     – Muito sério... Só que isso foi ontem, é decorrido. O que eu quero do senhor neste momento, seu Júlio, é de um repouso bem feito, sem excessos. Seu reerguer definitivo depende disso.
     – Tudo bem, doutor – compreendi.
   – Eu prenderei esse moço em domicílio, doutor, pode crer nisso – Denise emendou.
    – Isso é bom, o vigie de perto... E sem excessos, como eu disse.
     – E o berço, doutor?
     – Que berço?
    – Ué, com todo esse colóquio entre Denise e o senhor estou me sentindo um bebê... Sei que preciso de repouso... Sem excessos – concluí, torcendo o beiço e fingindo nervoso.
Risos dos dois, de Denise e do doutor.

     Deixei o centro intensivo depois de uns dois meses, e o médico só me liberou depois de uns três.
        Vendi o meu loft, Denise fugiu em definitivo. E o ex-esposo – criminoso e corno – sumiu desde o momento em que levei os tiros. Ninguém o viu e ninguém o encontrou depois do delito.

***

     Denise e eu desistimos de nossos velhos empregos e, decidimos percorrer por um rumo incerto, pelo mundo inteiro, sem destino, sem tempo, sem querer muito. Conhecemos o frio do Chile, do Peru, dos pólos, vimos belíssimos poentes no Egito, no México, em Luxemburgo, em Montenegro... Rimos com o colorido do Cirque du soleil, com todo o belo que existe no globo. Conhecemos pobres e luxuosos viveres. Perdemos muitos preconceitos, recebemos conselhos, presentes e, vimos que é possível um escolher divino, o romper do medo, do sofrimento.
Tivemos nosso primeiro filho depois de dois verões juntos. O que mudou em definitivo nosso modo de viver. Interrompemos inúmeros sonhos, fizemos novos, vivendo o nobre e o esplêndido que todos querem ter, sendo cúmplice um do outro, fiel um com o outro, num mútuo respeito...
O segredo de um viver feliz...

...fim.

Este é um dos contos do meu livro:
"O sonho de ser escritor".


Obs.: Este conto e o livro mencionado acima, são "lipogramas".